Conto: Mistério na Taverna

12 de mar. de 2011


Aquela era uma fria noite de inverno. A lua cheia, parcialmente encoberta pelas nuvens, iluminava as escuras ruas da cidadela.  Como era comum nessa época do ano os becos eram encobertos por uma espessa neblina acinzentada.

Eu acabara de acordar assustada, por ter tido um sonho ruim. Havia tido pesadelos com vampiros. No sonho eles pareciam inocentes, suas feições eram amigáveis. Até que mostravam suas imensas e assustadoras presas ao mesmo tempo em que curvavam suas sobrancelhas, formando uma espécie de “v” acima de seus olhos. Logo após isso, um deles, o de cabelos longos e negros, me atacara. No mesmo instante em que eu acordei horrorizada.

Assim que acordei, olhei aos meus arredores e percebi, apesar da pouca iluminação, que ainda estava na taverna. Deduzi que, por isso, me sentia zonza e um pouco entorpecida. Apesar de não me lembrar, acredito que tenha bebido muito vinho horas atrás.

Apesar de estarmos no meio da noite. Havia ainda algumas pessoas frequentando o lugar. Dessas pessoas, alguns ainda falavam e riam alto, provavelmente sob o efeito do álcool. Enquanto outros estavam dormindo debruçados em suas mesas e com suas canecas caídas perto de seus pés, derramando o pouco liquido que ainda restava dentro delas. Ao longe, sentado de frente para balcão, podia ver um homem me encarando. Sua barba grisalha estava mal feita e seu semblante era o de alguém com poucos amigos. O cabelo prateado na altura dos ombros era descuidado e seboso. Os olhos fundos e avermelhados, como os de quem já havia bebido além da conta, olhavam fixamente para dentro dos meus. Sua camisa branca de malha estava suja de terra e seu casaco de lã marrom tinham alguns rasgos no ombro esquerdo. Em seu cinto de couro, algo que me chamara demais a atenção e me deixara amedrontada, um enorme facão de aço, todo sujo de sangue. Provavelmente era um caçador e havia vindo de uma caçada há poucas horas atrás.

Aquele homem não parava de olhar em minha direção. Ele ficava ali me fitando, quase imóvel. Sua caneca de cerveja ainda estava cheia. Provavelmente ele nem encostara nela desde que sentou naquele balcão. Porque diabos alguém pegaria uma bebida e não a tomaria? Porque ele me olhara daquela forma? Perguntas borbulhavam em minha cabeça. A única certeza que tinha é que aquela parecia ser uma longa e péssima noite. Primeiro, acordara no meio da noite debruçada em uma mesa, sem saber ao certo o que havia acontecido anteriormente. Depois, o terrível pesadelo e agora, esse homem estranho me olhando. 

Mesmo a cidade sendo perigosa na calada da noite, decidi que era melhor seguir para minha casa o mais rápido possível. Nessa hora da noite, as ruas eram quase desertas, com a exceção de mendigos e criminosos que perambulavam à procura de uma oportunidade de extorquir moedas e cometer atrocidades de toda sorte.

Procurei o taverneiro para que pudesse pagar o que havia consumido antes de cair no sono. Mas o velho dissera que eu nada devia à ele. E antes que eu perguntasse quem havia pagado, ele virou as costas e adentrou na porta que ficava atrás do balcão e ainda pude ouvir o barulho da fechadura sendo trancada do lado de dentro. Tentei chamá-lo, mas não obtive resposta alguma.

Conformei-me com a situação. Já que ele não queria receber e eu nem ao menos lembrava o que ou quanto tinha bebido, economizar algumas moedas não seria de todo mal.

Atravessei a taverna e fui em direção à porta de saída. O chão todo sujo, havia  todo tipo de bebida derramada ali. No caminho reparei que o homem ainda me olhava com ar de repúdio e não só ele, todos que ainda estava acordados me fitavam como seu eu devesse alguma coisa à eles. Apertei o passo e saí da taverna o mais rápido que consegui.

Lá fora o vento soprava com força o ar gelado daquela época do ano. As mãos chegavam a tremular de tanto frio. As ruas estavam bastante escuras, não havia muitas lamparinas ou tochas iluminando o local e a essa hora as janelas das casas já estavam todas fechadas, impedindo que saísse alguma luz de dentro delas. Apesar da escuridão, não me senti confiante em roubar umas das tochas que ficavam ao lado da porta da taverna. Não queria me tornar nenhuma espécie de ladra.

A casa onde morava não ficava muito longe dali. Mesmo assim, caminhava afobada. Queria chegar logo. Os passos curtos, porém rápidos. Os braços cruzados no peito, para tentar diminuir o frio, ao mesmo tempo em que segurava o vestido com as pontas dos dedos, na tentativa de impedir que sua barra arrastasse no chão.

Depois de afastar-me poucos metros da taverna, escutei uma porta batendo. Olhei para trás na mesma hora. A neblina encobria minha visão. Mas tive a impressão de ter visto alguém em frente a velha taverna.

Tentei apertar os passos, mas por causa do frio, o ar era rarefeito e não conseguia andar muito rápido, sem que perdesse o fôlego. Decidi que o melhor era continuar andando um pouco mais devagar. Mas continuar. Parar para recuperar o ar estava fora de cogitação. Enquanto andava ia fazendo orações em minha cabeça. “Pai nosso que estás no céu...” Comecei a ter a impressão de ouvir passos atrás de mim. Os passos eram pesados. “Livrai-nos de todo mal... Livrai-nos de todo mal...”. Começava a ficar cada vez mais assustada. Podia ouvir a respiração ofegante e perceber a claridade vinda da tocha da pessoa que parecia me seguir. Eu tinha medo de olhar para trás novamente. Sentia medo do que poderia ver. Podia ser qualquer um. Mas levando em consideração que era madrugada, com certeza, coisa boa não era.

Desesperada e tentando me livrar daquele que estava em meu encalço. Virei em uma rua estreita e cercada pelos altos muros das moradias ao redor. Essa rua era ainda mais escura que as outras, na esperança de que ele não me visse por causa da névoa e seguisse em linha reta, deixando-me escapar.

Antes mesmo de perceber que minha tentativa de fuga havia sido em vão. Já havia me arrependido da manobra. Poucos metros à frente, podia ver um mendigo sentado no chão encostado no muro. Ele não tinha uma feição muito boa e usava roupas velhas e rasgadas. Ao seu lado, um chapéu empoeirado com algumas poucas moedas dentro. E ao lado do chapéu, um homem caído, aparentemente desacordado. Não sabia se estava dormindo ou estava morto. Mas pela forma desconfortável com que estava deitado, a segunda opção parecia mais certa. Chegar nessa conclusão, me fez sentir um calafrio na espinha.

Sem saber ao certo se devia continuar seguindo em frente e ter que passar próxima ao mendigo ou se tentava voltar atrás. Hesitei por um segundo. E logo vi a claridade do fogo de uma tocha dobrando a esquina.
O calor do fogo me assustou ainda mais e sem pensar duas vezes, segui em frente. Ao que me aproximei do andarilho. Ele apoiando as mãos no chão, começou a fazer força para levantar. O mendigo parecia bastante fraco em ficar em pé, parecia-lhe um esforço bastante grande. Ao ver essa cena, comecei a correr. Tinha que passar por ele antes que conseguisse se levantar.

No instante em que passei perto dele, num impulso com as pernas ele tentou jogar seu corpo para frente, enquanto se apoiava com uma mão no chão e com a outra tentou me agarrar. Fui mais rápida que ele e consegui passar adiante. Nisto, pude perceber que quem estava me seguindo também aumentou o ritmo de seus passos. Porém, o mendigo estava tampando a passagem.

Enquanto continuava a correr, e agora não parecia sentir o fôlego se acabando. Talvez porque a sensação de pânico não permitisse ao meu cérebro raciocinar que estava faltado ar, tamanho era o meu medo. Ouvi uma voz rouca, porém forte, dizendo em tom imperativo: - Saia do caminho!- E não pude deixar de olhar para trás. O homem que estava me perseguindo era quem eu temia, o mesmo que  me encarava na taverna minutos antes. Mas o que será que ele queria de mim? Seja lá o que fosse, não queria saber.

Quando olhei para trás, vi aquele homem agarrando o mendigo pelo colarinho da camisa, erguendo-o do chão e tacando-o violentamente contra a parede. O pobre andarilho tentou arrancar uma faca de dentro de seu cinto. Mas foi em vão. Quando se chocou contra o muro, deixou cair a arma de sua mão e ficou atordoado no chão. O homem que estava atrás de mim, virou-se para o mendigo com olhar de desdém e continuou a caminhar em passos firmes em minha direção.

O incidente com o mendigo me fez ganhar algum tempo. Não parei de correr um minuto se quer. O homem já aparentava ter certa idade e não conseguia me acompanhar e percebendo que estava ficando um pouco para trás, bradou – Não tente fugir de mim, te encontrarei onde quer que você esteja!- sua voz era carregada de raiva. Ao mesmo tempo em que continuava tentando se distanciar dele, gritei de volta – O que você quer comigo? Me deixe em paz! – minha voz saiu fraca e ao mesmo tempo desesperada, transparecendo o medo que sentia.

A cada passo ganhava mais distancia daquele maníaco. Se não tivesse entrado nesta maldita rua, certamente chegaria em casa antes que ele me alcançasse. Porém, ainda estava confiante de que chegaria lá com vida. Pois estava correndo muito mais depressa do que ele, e mesmo com o vento frio, o ar parecia não me faltar. Enquanto ele fazia grande esforço para tentar correr, mas tudo que conseguia era um trote vagaroso.

Ao mesmo tempo em que corria, gritava por socorro. Mas a cidade estava deserta e as paredes das casas eram muito grossas para que alguém que estivesse dormindo pudesse me ouvir.

Continuei correndo até me deparar com uma bifurcação. A rua em que estava acabava nos muros do cemitério. A partir daí, a rua se dividia em duas, provavelmente contornavam as paredes do campo santo. Mas por causa da nevoa, não era possível enxergar onde daria nenhum dos dois caminhos. Pra piorar, no desespero em que me encontrava mal conseguia raciocinar para tentar lembrar qual das ruas me levaria mais rápido para casa. Se é que alguma delas me levaria até lá...

Para não perder muito tempo, nem tentei forçar meu cérebro a pensar. Virei à esquerda, sem pestanejar. A rua era mais estreita do que eu calculava e havia muitas pedras soltas no chão. Tive que diminuir o ritmo de meus passos para não cair no chão. Enquanto caminhava com cuidado, podia ouvir os passos pesados que me seguiam, mas eles pareciam distantes. Torcia para que ele se confundisse quando tivesse que escolher uma das passagens.

Depois de caminhar alguns metros à frente, percebi que aquela rua na verdade era um beco. A passarela não dava alugar algum. Simplesmente morria num paredão. Senti minhas pernas tremerem de medo. Encostei-me a parede lateral, a fim de fazer o menor barulho possível e diminuir as chances de ser vista ali.

Mal me ajeitei ali e já avistei o clarão da tocha adentrando a estreita passagem. Num segundo de desespero deixei escapar um grito de horror, que acabara denunciando minha localidade. O homem soltou um suspiro de satisfação e encheu os pulmões de ar. E parecendo recobrar suas energias, pegou seu facão e disparou em minha direção. Apesar da névoa, vi seu rosto iluminado pelo fogo. Percebi apenas ódio em seu olhar.

Na velocidade em que aquele homem corria em minha direção, não demorou para ele tropeçar em uma daquelas pedras soltas do chão. Desajeitado e com as duas mãos ocupadas, uma com o facão e outra com a tocha, o velho despencou no solo. Seu peito se chocou com uma rocha pontiaguda e abriu um corte, que começou a sangrar imediatamente. O homem soltou um gemido de dor. Colocou a mão em cima do ferimento e esforçou-se levantar com o apoio do outro braço. Depois agarrou o facão que estava caído ao lado de sua perna esquerda.

Enquanto isso, eu gritava por socorro e tentava implorar por minha vida. Parecia em vão.

Porém, quando o homem se aproximou, todo meu medo pareceu esvaecer de repente. Senti como se eu já não tomasse mais conta do próprio corpo. Tudo o que conseguia ver era o ensanguentado machucado no peito do velho. Também sentia um estranhamente delicioso cheiro doce no ar.

Era como se eu não fosse mais eu. Levantei da parede onde estava encostada numa velocidade incrível. E como se fosse a coisa mais óbvia a se fazer, fui pra cima do caçador. Ele tentou me acertar com o facão. Porém seus movimentos pareciam incrivelmente lentos. Desviei com facilidade e no mesmo instante agarrei seu antebraço. O apertei com uma força que não sabia que possuía. O homem abriu a mão e deixou sua arma cair. Forcei seu braço para baixo e logo aproximei ainda mais o meu corpo do dele. O velho praguejava - Volte para o inferno, cria do mau! – Mal ouvi ele dizer isso e percebi meus dentes ganharem mais tamanho. Cravei os dois caninos no pescoço daquele pobre homem. E provei o mais adorável sabor que já tinha sentido na vida. O sangue dele corria para minhas presas como água. A sensação de prazer era inigualável. Nunca havia sentido nada parecido com isso.

Quando me livrei do êxtase e voltei a ser eu mesma. Ouvi o corpo do homem caindo sem vida à minha frente...

1 comentários:

Anônimo disse...

Contos sempre me fazem ter vontade de voltar a montar histórias pra RPG... mas logo passa, hahahahaha

Muito bom. Se essa precária memória já não falha, já tinha lido o conto na época do From Here to Eternity, mas continua muito bom!

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